A loucura sempre esteve ou a loucura chega?
- Clube Negrita
- 7 de mar.
- 3 min de leitura
A Vegetariana, o romance - novelas escrito pela sul coreana Han Kang, me atravessou, principalmente, com a pauta da loucura. Se é que podemos chamar de pauta algo que nos rodeia e, para muitos de nós, nos assombra. Qual é o momento da vida de uma pessoa onde ela abandona as normas, a realidade e abraça sua natureza? Existe esse momento? Quando é que uma natureza adaptada ao cotidiano se transforma para nunca mais retornar, rompendo todos os laços? Ou, o quanto precisamos suportar até sucumbirmos de vez?
O livro possui três capítulos e é narrado na perspectiva de três personagens que convivem com a personagem que, inicialmente, é a principal. Yeonghye é a filha mais velha de uma família patriarcal, ela é casada e seu esposo é o primeiro narrador. Ele se surpreende e se espanta com a repentina decisão da esposa de não consumir mais nada feito com base animal, e isso acontece da noite para o dia, com base em sonhos que a esposa passa a ter. Antes, Yeonghye havia sido uma esposa normal, uma mulher comum, segundo ele, quase invisível, alguém que cumpria perfeitamente o papel de esposa, tanto que ele sequer diz o nome dela em todo o capítulo, é apenas a esposa. O vegetarianismo da mulher o constrange em diversas situações, o levando a mobilizar a família da esposa para que ela volte a ser como era, que volte a comer carne, a dormir, a falar e se comportar de acordo com o papel de uma mulher do lar. Tal mobilização encontra seu ápice num jantar de família, onde o pai de Yeonghye, ex militar da guerra do Vietnã, aplica técnicas de tortura para que a filha engula um pedaço de carne.
O segundo narrador é o esposo de Inhye, irmã mais nova de Yeonghye. Inhye é dona de uma loja em crescente sucesso, seu marido é vídeo artista, ela faz totalmente tudo, cuida da casa, do trabalho e do filho, sem apoio. Este esposo cria uma obsessão erótica pela cunhada após o episódio do jantar em família e seus desdobramentos. Yeonghye, após o fatídico jantar, se separou, passou alguns meses na ala psiquiátrica do hospital, e agora mora sozinha. O esposo, o cunhado, deseja pintar o corpo de Yeonghye e gravar uma performance sexual com ela. Eles se aproximam, é um dos poucos momentos onde ela se abre e é ouvida, diz que não come mais carne por conta dos rostos que saem de suas entranhas. O cunhado tem seus desejos realizados; Yeonghye tem seus pensamentos reforçados ao ser pintada com flores por todo o seu corpo, como uma grande árvore. Mas o capítulo desagua em uma nova internação psiquiátrica, pois, Inhye descobre tudo e denúncia a atitude do marido como abuso de incapaz.

O terceiro narrador é a própria irmã, Inhye, que é a única pessoa da família a continuar cuidando e acompanhando Yeonghye, que agora vive internada em um hospital psiquiátrico e come menos a cada dia. Todos os membros de sangue, exceto a irmã, a abandonaram. A loucura passa a ser um motivo de afastamento ao invés de cuidado. Yeonghye decidiu parar de comer, passa os dias plantando bananeira e, quando consegue, fugindo para as montanhas que cercam o terreno da clínica. Ela quer ser como as árvores, se conectar com elas e viver de sol. Ela não come, e os médicos querem introduzir uma sonda através do seu nariz, para que seja forçada a se alimentar, forçada a viver. Durante todo o capítulo a irmã se questiona em qual momento aquilo começou, quando foi que Yeonghye se desconectou da vida e, principalmente, por que a deixou lá, sozinha.
Durante todo o livro, várias peças nos são apresentadas para que possamos ter uma visão, mesmo que parcial, do que pode ter acontecido. Violência doméstica, est'pro marital, a mulher como papel secundário no cotidiano das pessoas. O que acontece com uma mulher que não “serve” mais para representar a dona de casa funcional, a mãe funcional, a esposa funcional, a filha funcional? A insanidade sempre esteve com Yeonghye ou ela foi brotando até desabrochar? Um detalhe interessante é que Yeonghye nunca é a narradora total, só sabemos dela quando ela nos conta seus sonhos, então a autora Han Kang nos deu pouquíssima oportunidade de entender o que ela pensava sobre sua própria vida, mas nos deu muito para pensar sobre como a vida pode se transformar num piscar de olhos.
Foi um livro que me assustou pela proximidade que todas nós podemos ter com a loucura. Talvez um dia, numa manhã comum e sem entraves a gente acorde, atravesse essa linha e nunca mais retorne.
Em 2024, Han Kang se tornou a primeira sul coreana laureada com o Prêmio Nobel de Literatura com seu livro A Vegetariana.
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