O labirinto do artista pobre
- Clube Negrita
- 22 de jun.
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Uma roda de samba com feijoada, um sarau que acontece em um boteco, uma festa de rap na praça, uma exposição de pinturas e miniaturas na viela, são exemplos de atividades de arte e cultura que acontecem todos os dias nas periferias da cidade. Essas atividades são tocadas, na maioria das vezes, por pessoas com duas ou mais profissões: professora e poetisa, assistente social e músico, arte educador e ator, advogado e DJ, gestora e desenhista, zelador e escritor, e por aí vai.
Quando perguntamos para essas pessoas a sua profissão, a maioria evoca seu “primeiro” trabalho, aquele que lhe garante o sustento do dia a dia e proporciona que, em alguns momentos, essa pessoa exerça o “bico” de ser artista. Eu chamo de bico cultural: um convite para sarau ali, uma apresentação acolá, uma exposição em outra cidade, todas com a perspectiva de alguma moeda no final do dia e a oportunidade de apresentar seus trabalhos e encontrar seus amigos, sem interromper o fluxo do horário comercial é claro.
Mas tem gente que vive da arte, de segunda a segunda, com remuneração e sem precisar vender 11 horas do dia em trabalhos aleatórios para bancar os custos da vida. Sem reduzir a vida dessas pessoas à frase “mas eles são herdeiros”, quero pensar sobre: por quê a gente que é pobre tem que ter mais de um trampo para poder fazer arte e ainda não consegue se considerar artista?
Pela minha experiência e observação, o caminho das pedras que as pessoas pobres percorrem para seguirem a profissão de artista ainda precisa de bastante apoio governamental e transformação mental coletiva para seu recapeamento. A sociedade tem uma visão extremamente romântica do que é ser artista, do que é ser um trabalhador da cultura (alguém que vive e trabalha com arte e cultura). Essa visão foi romantizada pelas décadas de televisão com a mesma programação todos os dias: a vida dos famosos e a exploração dos corpos dos artistas ao invés da reflexão sobre seu fazer artístico. Afinal, o que se mostra na TV e nas redes sociais é o supra sumo do industrializado cultural, ninguém quer saber do artista pobre (às vezes nem ele mesmo), principalmente os grandes incentivadores das leis de incentivo, para eles, basta a montagem anual de Natal no shopping mais próximo.
Esse movimento deixa os artistas pobres de escanteio em tudo, inclusive no acesso à informação para se profissionalizarem e alcançarem novos patamares com seus trabalhos. Existem artistas com mais de 10 anos de carreira que ainda insistem em receber via recibo simples, por não saberem (ou não se interessarem em) como criar uma MEI. Outros passam dificuldades pois têm seus trabalhos reconhecidos, mas, pela rotina e pelo entendimento do fazer artístico como um bico, não sabem como se inserir nas instituições, como apresentar seus trabalhos ou até criar e executar projetos. Daí vão ficando de lado, conforme a legislação se atualiza e as regras do jogo vão ficando mais e mais complexas. A cada passo uma necessidade nova, uma certidão, um certificado, uma indicação, uma comissão de avaliação, o amigo de um amigo que trabalha no Sesc, a jornada dos micro poderes, e por aí vai.
Trabalhadores da cultura estão inseridos em vários lugares da indústria cultural, um desses lugares é o do trabalhador do setor administrativo. Poucas pessoas sabem ou querem saber, mas os equipamentos públicos de cultura vivem um momento de escassez de trabalhadores, pois muitos estão se aposentando, novos concursos não são realizados e terceirizados, indicados e (até) estagiários e demais pessoas em etapa de formação acabam acumulando funções, com sobrecarga de trabalho, altas exigências no cumprimento de metas e baixos salários. Muitos não sentem nem mais prazer em ver os resultados de seus esforços (o lançamento de uma peça, a abertura de uma exposição) dentro das instituições.
Enquanto isso, novos diretores, secretários, gestores entram e saem da chefia das instituições públicas e privadas. Basta uma leve olhada nas redes sociais do chefe da vez e você verá: espetáculos chiques, fotos com artistas globais, jantares e reuniões com gente importante, rostos saudáveis e alguns até inchados de tanta fartura, a maioria brancos, mas quando são negros o roteiro é o mesmo: acumular contatos para si mesmo. Basta uma pesquisa atenta nos diários oficiais para observar o que ainda é possível observar: contratos de milhões com empresas e instituições que “promovem cultura” mas que ninguém nunca vê no dia a dia, enquanto os pobres que trabalham com cultura continuam com sintomas de ansiedade, alta carga de trabalho e quase nenhum espaço para profissionalização e fomento de suas obras.
Eu sou artista. Também sou gestora de projetos, produtora, assistente administrativa, escritora, tento ser atleta, dona de casa, boa filha, boa amiga, irmã, namorada e mãe de planta. Mas na essência sou trabalhadora da cultura. Trabalho para que mais pessoas encontrem as magias que eu encontrei através da pintura, da literatura e das artes em geral. Mas o sonho vive cercado pela realidade. Artistas pobres precisam de espaços de formação e desenvolvimento, e esse desenvolvimento precisa acontecer de forma remunerada, pois não é toda pessoa que consegue fazer uma residência no pico da montanha tirando do próprio bolso. E esse papel é responsabilidade primeira das instituições públicas de cultura de cada cidade. Para que os cidadãos, não as grandes OSCs, possam aprender a gerir recursos públicos para uma boa produção cultural e assim se tornarem parte da economia, movimentando a cena com seus saberes. Para que espaços culturais feitos por pessoas pobres possam se manter e que as atividades culturais lá realizadas ocupem o lugar de trabalhos oficiais dessas pessoas.
Vale citar os aspectos subjetivos, psicológicos, que direcionam uma pessoa pobre a escolher o “caminho mais fácil” da vida CLT. O medo. Medo de não “dar certo” como artista, de não conseguir se manter, de acabar virando um fardo para sua família, de ser julgado por todos ao seu redor e pela própria mente condicionada à ideia de trabalho oriunda da escravidão. Tal como na política, a sociedade prefere e aceita que ricos sejam artistas e que pobres continuem na rotina que rasga todo e qualquer tipo de criatividade. O medo também pode ser combatido com políticas públicas. Mas essa é outra conversa.



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